Qualquer casa antiga, que perdure no tempo, tem uma história que voga ao sabor dos donos que vão partindo e chegando, regulamentados ou não por testamentos. Esta casa não foge à tradição.
O registo mais antigo da casa é de 1850, onde é descrita na verba nº2 da lista bens da Baronesa da Alverca adquiridos por Vicente Teixeira de Castro.
“Uma morada de casas em frente das da residência p.ª a parte do poente, telhadas e sobradadas, com seu quintal, palheiro, e mais lagares pegados, que partem do nascente com a rua da calçada e do poente com casas de João Gomes desta v.ª, do Norte com largo do Cruzeiro e do Sul com José Nunes”.
Sabendo-se que a Baronesa de Alverca (D. Luísa Maria Antónia de Morais Pimentel de Morais Pimentel Sá Sarmento de Vaía Vilas Boas) faleceu em 1800 com 70 anos, torna com bem provável a edificação da casa no século XVIII.
Olívio da Ressurreição Morais e Rita Clara Pessoa são os primeiros moradores da casa que se conhecem. Do primeiro sabe-se que nasceu em Vilas Boas no dia 13 de março de 1883, fora do casamento e, talvez por isso, só tenha sido batizado a 30 de dezembro.
No assento de batismo consta ser filho natural e ilegítimo de João de Morais Botelho, natural de Vilas Boas, e de Luiza Maria, natural da Lousa.
Teve como padrinho o reverendo Albino de Morais (residente em Vila Flor) e como madrinha foi evocada Nossa Senhora do Rosário.
Com mais ou menos proteção divina, Olívio teve que esperar pelo falecimento do pai em 1903, para se habilitar em 1908, e passar a fazer parte, por direito próprio, e não apenas genético, da importante família Morais Botelho.
Ganhou, entre outros haveres direito à casa onde viveu com a sua esposa, num casamento sem filhos até 1933, ano em que os dois vêm a falecer.
Primeiro Rita e de pois Olívio, vítima de sífilis-caquexia, num hospital do Porto
Olívio, uma semana antes de falecer, faz um testamento, incluindo a casa que aparece descrita como “… casa de moradia com lagar de azeite e lagar de vinho, quintal em frente ao cruzeiro na rua da Lamela…”.
No mesmo testamento Olívio não se esqueceu de incumbir os vivos de intercederem divinamente pela bem-estar da sua alma, com cem missas que mandou rezar.
Em 1937 a casa torna-se propriedade única de Maria Cândida Morais (irmã de Olívio).
Cabia-lhe a importante responsabilidade de, nos meses de agosto, acolher a imagem de Nossa Senhora da Assunção, para a vestir com paramentos e fios de ouro, antes de ser levada para o andor, na procissão do 15 de agosto.
Durante este período Cândida cedeu os baixos da casa ao seu cunhado Albano Lopes Pinto, onde este instalou a sua loja de comércio (soto).
A família Lopes Pinto, já importante em Valverde da Gestosa, vinda de não se sabe bem de onde, alarga assim a sua influência em Vilas Boas, concentrando bens, seguindo uma política criteriosa de consanguinidade com a família Morais Botelho.
Cândida não casou e deixou a casa aos seus sobrinhos João Lopes Pinto e Adelino de Jesus Lopes Pinto, que não a vieram a ocupar.
João não resistiu ao falecimento da sua bem-amada prima de Zedes, vivendo, vários anos, numa depressão amorosa crónica até ao final da sua vida.
Adelino talvez tivesse considerado mais confortável ficar na casa dos Morais Botelho no fundo da Vila (em Vilas Boas), na companhia das suas irmãs Zulmira e Cândida.
Com o falecimento de Cândida em 1940, que também encomendou, em testamento, cem missas para conforto da sua alma, a casa fica ao abandono.
É Eduardo Augusto Lopes Pinto (irmão de Adelino e de João) que ocupa a casa, em finais da década de 50 do século passado.
Nos baixos da casa Eduardo monta uma moagem da era industrial que moía cereal ao som ensurdecedor de um motor a gasóleo.
A parte superior serviu de apoio habitacional para o caseiro e família.
E assim tudo se manteve até 1966 quando Eduardo faleceu.
Segue-se novo um período de abandono em que o quinteiro da casa, devassado por toda a população, servia de casa de banho pública.
Este abandono termina quando Adelino decide ocupar a casa com a sua esposa Gabriela e os seus filhos Nuno e Paulo que, por testamento, após o falecimento de João em 1964, já tinham herdado, a metade da casa deste.
Uma decisão influenciada por Gabriela que nunca teve as simpatias de família Lopes Pinto, e viu, nesta decisão, a possibilidade de estar mais resguardada da família do marido.
Na realidade, Adelino fugiu à lógica dos casamentos arranjados entre ricos.
Contrariamente aos irmãos, decidiu seguir e assumir os desígnios do coração, contraindo um casamento contrário à vontade dos pais, negando a pretendente rica que lhe estava destinada.
Adelino não precisou, como seus irmãos o fizeram, de viver o amor às escondidas, colocando panos nos cascos do cavalo para dissimular a partida para encontros amorosos ou preparar um quarto numa azenha, para encontros amorosos clandestinos ao som das águas do rio Tua.
O resultado foi a animosidade com que Gabriela sempre foi tratada pela família do marido.
A mudança da família de Adelino para a casa obrigou a obras de recuperação.
Repararam-se os danos da vibração dos motores da moagem e tornou-se a casa mais habitável, com instalação elétrica, canalizações, e uma casa de banho interior.
Os espaços foram pouco alterados, tendo-se apenas convertido em marquise uma velha e degradada varanda de madeira (hoje de novo varanda, mas com uma escada de acesso).
A família de Adelino passa a morar na casa, que nunca mais esteve abandonada.
Adelino, com a responsabilidade de administrar a casa agrícola, vai passar mais tempo na casa, enquanto Gabriela, Nuno e Paulo, com a vida mais estabelecida em Lisboa, apenas estão em Vilas Boas durante as férias.
Nas noites longas de inverno, com a esposa e os filhos em Lisboa, Adelino entretem-se no aconchego da lareira, preparando, com perícia no manuseio de um ferro em brasa, cabaças secas.
Esta situação manteve-se até 1976, quando uma doença pouco explicada foi consumindo a saúde de Adelino, retendo-o em Lisboa, onde viria a falecer em 1978. Ainda em agosto de 1977 Gabriela, com a tenacidade que lhe era própria, empreendeu uma ida com seu marido Adelino e sua mãe Cândida a Vilas Boas.
Um ato subconsciente, porque estas atos nunca são assumidas de plena consciência, para Adelino se despedir da sua Vilas Boas.
Assim aconteceu, nem Adelino nem a sua sogra Cândida voltaram a Vilas Boas.
Com a vida estabelecida em Lisboa, Gabriela e seu filho Nuno passam a fazer a administração da casa agrícola á distância, mas com frequentes vindas a Vilas Boas.
Durante este período a manutenção da casa foi feita principalmente pelos caseiros (primeiro o Adolfo e depois o Augusto) e pela Luisete, que em 1976 iniciou um longo período de dedicação à casa. neste período, em 1979, adquiriu-se a João Bártolo a casa contigua a poente, permitindo a ampliação da casa, que passou a ter mais dois quartos (atuais quartos da enxerta e do fundo).
Na sequência do falecimento de Gabriela na noite de Natal de 1996, Nuno e Paulo vendem a casa que tinham em Lisboa, onde viveram os primeiros tempos das suas vidas e Nuno muda a residência permanentemente para Vilas Boas.
O clima menos húmido de Vilas Boas revelou-se mais favorável para os problemas de saúde de Nuno, passando, assim, a habitar a casa e a ocupar-se das propriedades agrícolas, ao mesmo tempo que vai participando na vida pública e social da região (dirigente do clube desportivo de Vilas Boas, membro da junta de freguesia de Vilas Boas e deputado da Assembleia Municipal de Vila Flor).
Entretanto, Paulo prossegue, em Évora, a vida profissional que começara em 1981, continuando afastado de Vilas Boas, onde só vinha ocasionalmente, por pouco tempo.
Neste período a casa ganha mais vivacidade, especialmente quando a Luisete se tornou companheira de Nuno e passou também a habita-la.
Foi o período em que os anexos da casa serviram de abrigo a uma vasta e diversificada prole de criação doméstica: coelhos num anexo hoje contíguo ao salão de jogos; rolas na antiga capoeira, hoje casa de banho do apartamento; uma fauna diversificada de patos e galinhas que ocuparam a zona onde hoje é a piscina e o antigo palheiro, hoje o apartamento do palheiro.
Uma biodiversidade doméstica que originou visites de estuda dos alunos da escola primária de Vilas Boas.
O estado de saúde de Nuno vai-se agravando, e, de uma forma esperada, que nunca se espera, como sempre acontece, a sua vida termina em princípios de 2009.
Paulo fica a 450 quilómetros de distância, na posse de uma casa, com sinais de degradação e a necessitar de obras de reparação.
A solução encontrada por Paulo foi a de obter, com sucesso, um financiamento para reconverter a casa num turismo em espaço rural.
Uma decisão temerária, pela ignorância que tinha, mas, depois de adquirir alguma formação na área do turismo, foi num novo campo de atividade que se lhe abriu e que começou a encarar com entusiasmo.
Assim nasce a Casa dos Lagares de Vara e Pedra que finalmente adquiriu dignidade suficiente para ter um nome próprio e não ser apenas a casa ou a casa de quem a habitava ou a possuía.
E assim termina esta história de uma casa com história, engolida este presente de alegrias, desânimos, derrotas e vitórias, temperados por esperança, que hoje vivemos….
Continuar a história seria pouco ajuizado, porque não é possível ser-se historiador de presente próprio.
Talvez um dia, quando o futuro tornar este presente passado, alguém possa continuar a história, na mesmo pessoa em outra pessoa, quem sabe o Daniel…